domingo, 9 de setembro de 2007

Saudades de um livro

Dizem as mitologias antigas de alguns povos mediterrâneos que o mar é o lugar do mistério e do caos. O mundo começou pela água, que a tudo envolvia, até que a terra apareceu. Mas o mar continuou lá, soberbo, nos cercando por todos os lados, mostrando-nos o quanto somos vulneráveis. Basta que suas ondas se elevem e já nos atemorizamos. No mar habita o monstro marinho que ninguém vê, mas que faz desaparecer os navios, faz naufragar as esperanças das esposas nos cais.
Tenho saudades de um livro que fala do mar e de tudo o que ele é, a trajetória de uma vida. É a história do velho e do mar, contada por Ernest Hemingway com aquele toque de dor e magia que só ele soube dar. Na minha adolescência, o livro, numa edição ilustrada a bico-de-pena, fazia-me arrepiar de suspense e emoção. Eu passava a mão sobre as figuras, sentindo o que o velho sentia: frio, calor, fome, náusea. Quase o gosto do sal na boca. Meu Deus, o mar é tão grande e o ser humano é tão pequeno! Vejo naquele velho todas as minhas iniciativas de alcançar meus sonhos, de fazer a sorte mudar. E, ao mesmo tempo, minha impotência, meu cansaço, meu corpo pequeno diante do mar infindo.
As oportunidades às vezes aparecem tão grandes, tão definitivas quanto finalmente fisgar um peixe enorme, o maior que já se viu, depois de tantos dias de penúria e má sorte. Então, lutamos por agarrá-las, lutamos com todas as forças, para não perder de vista a chance de provar que somos algo mais que meros mortais... Uma luta ardente e apaixonada, que pode durar uma vida inteira, uma noite inteira, como aconteceu com o velho...
A oportunidade, no entanto, pode ser consumida pelo mistério do mar. Quando tudo parece tão perfeito, quando sentimos que vencemos a luta, o mar faz surgir adversários que não podemos enfrentar. O velho é a necessidade imperiosa da resistência humana ante o destino implacável. Entregar-se resignadamente poderia ser o melhor caminho, mas ninguém desiste assim de um sonho, de um peixe grande puxando o anzol.
Fico pensando se Hemingway sabia exatamente o que iria vir depois, ou se ele também, como eu, entrou no barco com o velho, puxou a linha, agarrou o peixe e, por fim, teve de ceder à força caótica dos tubarões. Bem pode ser que ele tenha tentado salvar o velho da desilusão completa, do fracasso da perda de um peixe que amava, mas os tubarões não respeitam sequer a pena de um hábil escritor.
Talvez Hemingway tenha visto, pelos olhos do velho, o mistério do mar. Se o viu, curvou-se ante essa soberania e seguiu pelo papel a trilha que o mar lhe traçou. Um pescador sabe que quem manda é o mar. Ele resiste ao oceano por puro capricho, por uma desesperada esperança de revanche, um minuto de distração. Qual! O mar não perdoa. Nem na calma se está seguro no mar.
Um livro inesquecível é aquele que faz a gente ter vontade de alterar o rumo da história e, ao mesmo tempo, nos convence de que a trajetória é imutável. Como a vida. Como os sonhos que a gente carrega e, depois, vê serem estraçalhados pela fatalidade.
Ao menos, é também inesquecível porque deixa um gosto na boca, quer de satisfação, quer de perplexidade. Aprendi com o velho que às vezes só conseguimos retornar ao porto com a carcaça da oportunidade perdida. Mas, mesmo que isso doa no fundo da alma, não é o fim. Sempre podemos deitar e dormir. Ao menos nos sonhos podemos recuperar o passado, reaproximar-nos do que já não somos. No sonho, somos transportados às paisagens as quais só podemos, acordados, recordar. Mas os sonhos do velho não são sonhos de descanso, porque a batalha da vida jamais nos deixa repousar.
Essa certeza implacável faz doer ainda mais nossas costas, nossas mãos. Mas meu livro inesquecível não me deixa sem esperança. Penso no velho, no peixe, nos tubarões e me apavoro às vezes. Contudo, sei que posso dormir e sonhar. Nos sonhos, quem sabe, eu consiga aproveitar a oportunidade, quem sabe, eu possa vencer os leões.

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