quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Uma prece de ano-novo (Salmo 20)

O ano-novo em Israel era um tempo muito fértil em celebrações, mormente pela solicitação da bênção divina para o novo ciclo tanto do plantio e da colheita, como do cuidado com os rebanhos e sua procriação, sem deixar de lado a organização da vida humana em termos de família e de estrutura social.
Neste contexto, encontramos o Salmo 20, um salmo que é entendido como uma liturgia em forma de oração, feita no período do ano-novo, em favor do rei, durante o culto festivo em que o próprio Deus era celebrado como rei (v.9: há uma possibilidade de tradução diferenciada das Bíblias na versão revista e atualizada, que seria: “Iahweh, salva-nos, ó rei, que nos ouve no dia em que clamamos!”).
A referência “salmo de Davi” nos indica não diretamente uma autoria, mas a que coleção o Salmo pertence ou que foi utilizado em homenagem à casa monárquica, o que também reforça seu conteúdo como um salmo real.

A bênção da esperança
Resposta em tempos de dificuldades, proteção frente aos perigos, forças para viver a vida diante dos desafios. Esses são os nossos desejos de ano-novo. Diferente não era para o povo de Israel que, em última instância, dependia do bem-estar do rei, das autoridades constituídas, para também usufruir seu próprio bem-estar. Acabamos há pouco o processo eleitoral em nosso país e iniciamos o ano na mesma perspectiva: se tudo der certo lá em cima, nossa vida se torna melhor por aqui! Que haja menos corrupção, mais justiça, mais igualdade... Esse é o nosso sonho.
Nos tempos do povo da Bíblia, essas aspirações eram postas diante de Deus na festa de ano-novo. Muitos autores e estudiosos entendem que o culto de ano-novo em Israel, como acontecia em outras nações, incluía uma espécie de “re-coroação” do rei, uma renovação de votos. E também que o povo, em seus rituais, fazia uma “coroação” de Deus, novamente declarando que o Senhor era sua autoridade máxima.
Os povos ao redor de Israel tinham na figura do próprio rei um deus, o qual era venerado e adorado. Mas embora tivesse igualmente sua monarquia, Israel procurava se lembrar que o rei era um “ungido”, um “messias”, isto é, um enviado de Deus e até simbolicamente algumas vezes entendido como seu filho (ver Sl 2, que é um salmo real; esse entendimento não ocorre nos termos em que compreendemos Jesus hoje, como cristãos, evidentemente), um abençoado, um representante de Deus para servir ao povo. O rei também jamais poderia se esquecer disso. Essa visão de mundo visava a que o rei jamais se outorgaria de mais autoridade do que o devido. Ele governava em nome de Deus e deveria estar submisso Àquele que é o Senhor de toda a terra (Sl 24).
A oração do ano-novo, portanto, era uma bênção que todo o povo impetrava, em nome de Deus, ao rei, desejando que seu governo fosse bem-sucedido. O próprio rei deveria estar pessoalmente empenhado na concretização desse desejo. Para isso, ele oferecia sacrifícios e holocaustos (v.3) e o povo intercedia para que Deus os aceitasse, tornando-se benigno para o rei e, por conseqüência, com seus súditos e súditas em toda a extensão do Reino.
O desejo de um bom ano-novo também estava cercado pelas tradições mais antigas de Israel. O salmo fala da figura de Jacó, o patriarca, e dos lugares sagrados: o santuário e Sião. Os patriarcas rememoram ao povo suas origens como peregrinos, a constituição do povo, as marcas essenciais de sua identidade. E o santuário é um lugar da aparição divina por excelência (1Sm 3; Is 6, entre outros). Portanto, a origem do “sucesso” real deriva da história do povo e da experiência com Deus e não dos projetos e imaginações humanas, mesmo emanados do rei, envolto em toda a pompa de sua corte real.

Certeza de ser ouvido
A segunda parte do Salmo, v.6-9, parece ecoar a voz de um sacerdote, segundo Weiser[1]. Ele declara, de imediato, a certeza de que Deus ouviu a oração: “Agora eu sei que o Senhor salva o seu ungido”. Como se trata de um evento ocorrido durante o culto, muitos comentaristas acreditam que houvesse uma palavra profética que confirmasse a aceitação do sacrifício por Deus e, depois disso, o sacerdote se alegra, proclamando ao povo que a bênção certamente virá, sob a forma da “vitoriosa força de sua destra” ou, em outra tradução, “com os poderosos atos salvíficos de sua direita”. Essa expressão indica tanto os atos presentes de Deus em meio ao seu povo, como a memória dos livramentos passados.
Neste ponto, devemos pensar um pouco em como essa promessa de Deus une, ao mesmo tempo, o passado, o presente e o futuro... Clamamos hoje pelos dias que virão, lembrando que, no passado, Deus já manifestou sua fidelidade. Isso renova as forças e revigora os ossos para os novos 365 dias que se avizinham de nós!
Os versículos 7-9 assumem o tom de fala coletiva e parecem nos indicar a voz da comunidade. Embora agradecida a Deus por ser favorável ao rei, a população sabe que não é somente do exército real que virá a vitória, mas do “nome do Senhor”, invocado aqui como fonte de força e de vitória... Isso me lembra a maneira como Davi enfrenta o gigante Golias (Vou contra ti em nome do Senhor dos Exércitos!). O povo reconhece que existem momentos de fraqueza, mas igualmente é possível novamente erguer-se e manter-se de pé desde que a nossa confiança esteja em Deus. Nossos recursos e forças devem sujeitar-se ao seu poder maior, pois ele, de fato, é o verdadeiro rei, aquele que permanece para sempre. Dele é que vem a vitória que os governantes podem conquistar.
Em tempos de tanta apatia como os que vemos, em que parece que nossos sonhos se desvaneceram e nada mais podemos esperar, esse salmo nos convida a reposicionar-nos diante de Deus. A deixar de lado nossas aspirações humanas, ou melhor, revesti-las da esperança que vem de Deus. Só assim será possível construir um ano-novo realmente vitorioso!
[1] WEISER, Arthur. Os salmos. São Paulo: Paulus, 1994 (Coleção Grande Comentário Bíblico), p.149.

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