quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

As tentações do sofrimento (Revista Ultimato)

O homem está sujeito a inúmeras tentações: tentações do egoísmo, tentações do ódio, tentações do orgulho, tentações do dinheiro, tentações da lascívia e assim por diante. Mas ninguém se lembra das tentações do sofrimento. Elas também existem. Quando mal enfrentado, o sofrimento pode levar ao álcool, às drogas, ao desespero, à apostasia, à descrença e ao suicídio. “O sofrimento sempre significa tentação e até o homem piedoso está sujeito a se revoltar passageiramente contra Deus”, avisa o teólogo alemão Josef Scharbert. Em seu livro O Problema do Sofrimento, C. S. Lewis explica que “o sofrimento como o megafone de Deus é um instrumento terrível, podendo levar à rebelião final, que não dá lugar ao arrependimento”.

Este artigo pretende nomear e analisar as tentações do sofrimento.


A tentação da apatia

A apatia é uma das conseqüências da frustração. É ausência de sentimento e de resposta aos apelos emocionais. Algo como indiferença, desinteresse e entorpecimento emocional.

Não se pode confundir resignação com apatia. Resignação é virtude e refere-se à submissão paciente aos sofrimentos da vida. Jó suportou seus infortúnios e não “atribuiu a Deus falta alguma” (Jó 1.22), mas não foi apático. Ele amaldiçoou o processo todo de seu nascimento, da concepção ao parto, e terminou com o clamor: “Não tenho descanso, nem sossego, nem repouso, e já me vem grande perturbação” (Jó 3.26). Jesus chorou em público, frente à dor causada pela morte de Lázaro (Jo 11.35) e não escondeu dos discípulos a sua reação ante o sofrimento do Getsêmani: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mt 26.38).

A apatia não ajuda nada. É quase sempre uma mentira mental a uma porta aberta ao fatalismo, aquela atitude que desencoraja qualquer resistência ao sofrimento. O fatalista diz com muita simplicidade e pressa: “É como Deus quer”.



A tentação da autoflagelação

A autoflagelação tem a sua gênese na infeliz associação entre o sofrimento e o misticismo. O raciocínio é este: como a dor em alguns casos alimenta a religiosidade, ela é boa e atraente. Pendem para este comportamento aqueles que acreditam que a salvação é pelas obras e não pela graça de Deus. A pessoa se acostuma com a dor, passa a gostar dela e se aproveita dela para chamar a atenção e os cuidados dos outros. É algo doentio. Alguém observou que “quando não temos uma cruz pesada para suportar nós a fabricamos com dois palitos”. Mas é C. S. Lewis quem denuncia: “Em todo o reino da medicina não existe nada mais terrível de contemplar do que um indivíduo com melancolia crônica”.

Na declaração de Paulo — “sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo” (2 Co 12.10) — não há nenhuma idéia de autoflagelação. O prazer não está no sofrimento, mas naquilo que o sofrimento produzia: maior dependência de Deus e melhor apropriação dos recursos provenientes de Deus. O contexto mostra que o apóstolo lutou o quanto pôde contra o espinho na carne. Aceitou-o como uma imposição de Deus com fins benéficos.



A tentação da superindagação

A preocupação com a causa do sofrimento é até certo ponto justa e sadia. Tem enchido páginas e páginas de muitos livros, desde os tempos mais remotos. É o assunto do livro de Jó, no Velho Testamento. O grande problema é que o homem tem errado muito na tentativa de descobrir a razão do sofrimento. Ele apresenta respostas simples demais, embora o problema seja complexo demais. Às vezes gasta mais tempo com a análise do sofrimento do que com a solução dele. Com freqüência esta superindagação toma ares altivos e desrespeitosos para com Deus.

Naturalmente há algumas possíveis respostas, mas não para todos os casos de dor. O sofrimento pode ter como causa muitos fatores simplesmente humanos e removíveis, como, por exemplo, a imprevidência, a indolência, o vício, a estrutura injusta e o mais citado de todos: o pecado. O rabino Harold S. Kushner, autor do livro Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas, lembra que o “Holocausto aconteceu porque milhares de pessoas foram persuadidas a juntar-se a Hitler em sua loucura, e milhões de outras pessoas deixaram-se amedrontar, sendo induzidas a cooperarem”.

Todavia é necessário que não se atribua ao pecado próprio e ao pecado alheio toda a razão do sofrimento. A Bíblia não nos permite pensar assim. O livro de Jó conta que Elifaz, Bildade e Zofar estavam tremendamente enganados quando atribuíram o sofrimento do homem da terra de Uz a alguma iniqüidade daquele que Deus declarou ser íntegro e reto (Jó 1.1). Quando os discípulos viram o cego de nascença, perguntaram a Jesus: “Quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” A resposta foi contundente: “Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9.1-3). Em outra ocasião, Jesus corroborou este mesmo pensamento, afirmando que os galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que realizavam, e os dezoito sobre os quais desabou a torre de Siloé, não eram mais pecadores ou culpados do que todos os outros (Lc 13.1-5).

A tetraplégica Joni Eareckson Tada, que experimentou tremendo sofrimento, sugere uma atitude muito sábia: “Quando as peças do quebra-cabeça não se encaixam, deixemos que Deus seja Deus”. Essa reação acertada acaba com a tentação da superindagação.



A tentação da exageração

É muito fácil dramatizar. É muito fácil espalhar a dor por todo o corpo, quando apenas o joelho está doendo. É muito fácil esticar a dor de ontem para hoje e a de hoje para amanhã, quando ela já passou ou já diminuiu de intensidade. É muito fácil exagerar o tamanho e o tempo do sofrimento. É muito fácil fazer coleção de dores e de doenças. É muito fácil esquecer o precioso recado do salmista: “Ao anoitecer pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã” (Sl 30.5).

O povo de Israel várias vezes caiu nessa tentação de exagerar o sofrimento. Os espias exageraram a altura e o número dos gigantes da terra de Canaã: “Perto deles nós nos sentíamos tão pequenos como gafanhotos” (Nm 13.32-33). Até Elias exagerou a situação de apostasia na época do reinado de Acabe e Jezabel, quando disse que só ele havia permanecido fiel diante de Deus, embora houvesse mais sete mil que não dobraram a Baal os seus joelhos (1 Rs 19.14-18).

Um dos exageros que cometemos hoje gira em torno da atuação satânica. Estamos enriquecendo o currículo de Satanás, atribuindo-lhe poderes e proezas que ele não tem. Esse expediente torna a nossa caminhada cristã mais agitada e mais difícil. O já citado C. S. Lewis diz que “não devemos tornar o problema do sofrimento pior do que já é, falando vagamente de uma soma inconcebível de miséria humana”.

Para vencer essa tentação bastante comum é necessário ter em mente que Deus controla o número, a freqüência e a intensidade da dor, como se vê claramente no livro de Jó e na declaração de Paulo de que Deus não permitirá que sejamos tentados além das nossas forças (1 Co 10.12).



A tentação da fixação

Há pessoas que recusam qualquer alívio. É o caso de Jacó, cujo filho José fora dado como morto. Todos os seus filhos e filhas levantaram-se para o consolar, mas o patriarca não quis ser consolado: “Chorando, descerei a meu filho até à sepultura” (Gn 37.35). Essa tentação é muito comum.

A fixação fecha a porta ao alívio e dispensa o consolo que o passar do tempo produz. Pode provocar traumas, que mais tarde provocarão sofrimento maior. As vítimas da fixação da dor acreditam que a não fixação é um desrespeito à memória do morto. Conservam intactos o quarto e os pertences do ente querido que partiu. Criam um ambiente mórbido. Param no tempo. Entregam-se à dor e não esboçam a menor reação.

Não foi assim que Davi se comportou quando soube da morte do filho recém-nascido, por cuja cura orou com intensidade. Ele encerrou definitivamente o assunto da morte da criancinha e explicou aos seus amigos surpresos: “Enquanto o menino estava vivo, eu jejuei e chorei porque o Deus Eterno poderia ter pena de mim e não deixar que ele morresse. Mas agora que ele está morto, por que jejuar? Será que eu poderia fazê-lo viver novamente? Um dia eu irei para o lugar onde ele está, porém ele nunca voltará para mim” (2 Sm 12.22-23, BLH). O rei não fez cara triste nem ficou zangado com Deus. Ao contrário, facilitou e apressou o processo da superação da dor e readaptou-se à realidade, retornando rapidamente às atividades normais.

Para o nosso próprio bem e dos que nos cercam, não devemos nos amarrar à dor, afastando de vez o necessário alívio.



A tentação da amargura

Amargura não é só tristeza. É muito mais do que tristeza. É a infeliz mistura do sofrimento com o ressentimento e seus associados: decepção, ódio, ira e agressividade. O coração amargurado é tão desagradável e nocivo que a Palavra de Deus declara: “Não haja em vós alguma raiz de amargura que, brotando, vos perturbe e, por meio dela, muitos sejam contaminados” (Hb 12.15).

Quando Esaú se viu enganado por seu irmão Jacó a respeito da bênção da primogenitura, ele bradou com profundo amargor: “Abençoa-me também a mim, meu pai!” (Gn 27.34). O contexto revela que Esaú estava tomado de tristeza e de ira. Foi nesse dia que ele passou a odiar Jacó e resolveu matá-lo em ocasião oportuna. O sofrimento fica muito mais pesado se for associado à amargura. O escritor francês Alphonse Lamartine dizia que “tudo cresce e se renova, menos a vida do homem quando se gasta em amarguras”.

Quando a amargura é contra Deus, então o problema torna-se muito mais sério e perigoso. A esse respeito é oportuno lembrar a declaração de um sobrevivente do Holocausto: “Enquanto eu fui um dos habitantes de Auschwitz, nunca me ocorreu questionar o que Deus fez ou deixou de fazer. Nunca fiquei mais ou menos religioso com o que os nazistas nos faziam. Nunca acreditei que a minha fé em Deus fosse minada em suas bases. Nunca me ocorreu associar a calamidade que estávamos experimentando a Deus, censurá-lo, acreditar menos ou deixar de crer nele de todo, só porque Ele não vinha em nosso socorro”.

O conselho de Paulo é mais do que oportuno: “Abandonem toda amargura, ódio e raiva” (Ef 4.31, BLH).


A tentação da apostasia

A maior tentação do sofrimento é a perda dos padrões de fé e comportamento. Por causa da dor uma pessoa pode se desencaminhar moral e religiosamente, entregando-se ao álcool, às drogas, às orgias sexuais, à violência, ao crime e ao desregramento total. Não é à toa que o enorme abuso de drogas coincide com os sérios problemas do mundo de hoje. O raciocínio é simples: Deus falhou, deixando-nos sofrer, logo, também não temos compromisso com Ele.

Pior que a perda de padrões de comportamento, certamente é a perda dos padrões de fé. Nesta área duas coisas podem acontecer: o abandono do evangelho e o abandono de Deus. No primeiro caso, abandona-se a fé cristã e adere-se à outra doutrina, contrária à Palavra de Deus, como, por exemplo, ao espiritismo, que apresenta uma explicação ou teoria sobre o sofrimento humano, cujo fundamento dispensa a pessoa e a obra de Cristo. No segundo caso, abandona-se o próprio Deus e parte-se para a completa descrença: Deus não existe. No primeiro caso, comete-se mais propriamente uma heresia, que é a negação ou rejeição voluntária de uma ou mais afirmações da fé bíblica. No segundo caso, comete-se mais propriamente uma apostasia, que é o abandono total da fé bíblica.

Naturalmente esse processo é, às vezes, vagaroso. Começa com um sentimento de decepção com Deus e de revolta contra Ele. Em seguida surgem dúvidas cruciantes sobre o amor, o poder e a justiça de Deus. Nessa altura, o sofredor assenta-se na cadeira do juiz e coloca Deus no banco dos réus. Se as dúvidas não forem superadas, então o que vai restar é o completo abandono de Deus, uma espécie de suicídio espiritual.

Não obstante as muitas e variadas tentações do sofrimento, há uma série enorme de benefícios causados por ele. O rabino Joseph B. Soloveitchik lembra que “o sofrimento serve para enobrecer o homem, para eliminar de sua mente o orgulho e a superficialidade, para ampliar seus horizontes e reparar os defeitos de personalidade”. Já o teólogo luterano Erhard S. Gerstenberger, em seu livro Por que sofrer?, ensina que os sofrimentos querem que a atenção do sofredor seja voltada de si para Deus e do presente para o futuro, para a plenitude da salvação. Para C. S. Lewis, “o efeito redentor do sofrimento jaz principalmente em sua tendência a reduzir a vontade rebelde”. Sendo assim, é preciso vencer todas as tentações do sofrimento, com o auxílio daquele que exclamou: “No mundo vocês vão sofrer, mas tenham coragem. Eu venci o mundo.” (Jo 16.33, BLH).

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