quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Vai e não peques mais


Que atire a primeira pedra quem nunca pensou em entregar as credenciais. Quem, depois de enterrar uma criança ou uma jovem vitimada por um acidente, não tenha perguntado a Deus se vale a pena tanta dor, de tantas pessoas, ao longo dos anos, além de suas próprias.
Que atire a primeira pedra quem nunca pensou em desistir depois de um concílio conturbado, depois das palavras duras de um membro, depois de ter um parente morto em um funeral ao qual não pôde ir por estar longe demais.
Sim, que a pedrada seja forte daquele que nunca questionou sua própria vocação, que nunca perguntou se Deus não o chamou de verdade depois de ter justificado pela milionésima vez que ganhar um pouco mais do que a base pastoral não é usura, que ter o direito de sonhar com um pouco a mais não é ganância.
Atire a primeira pedra quem nunca chorou de madrugada sem ter um sermão pra pregar no outro dia. Quem não teve ataque de pânico; quem nunca perguntou se valia mesmo a pena jamais passar um natal com os pais novamente, ainda que velhinhos.
Atire a primeira pedra quem nunca pensou em desistir depois de uma palavra dura de um líder superior. Quem nunca pensou: O que estou fazendo aqui? enquanto ouvia que não era bom guia, ou que era alguém de pouca fé ou sem nenhuma visão. Quem não pensou em desistir por ver a dor de uma comunidade que não conseguia pagar seu salário em dia; que se sentia constrangida diante da limitação, justificando-se a todo o tempo.
Estou incomodada já faz quase um mês por este pensamento insidioso que aparece de vez em quando: quem entrega as credenciais é um fracassado que reconheceu que não deu conta do recado. É um fracassado porque desistiu. Tudo bem que ele é ainda mais corajoso que muita gente que pensa em entregar mas não entrega. Mas ainda assim, é um covarde, um fracassado, um perdedor. E a entrega das credenciais demonstra isso. Por isso, ele não vai aparecer em nenhum relatório, nenhuma estatística, nenhum discurso. Ele tem que ser apagado e esquecido.
Estou incomodada porque muitos desses covardes e fracassados são meus amigos. Eu chorei quando fiquei sabendo. Procurei por alguns, mas eles estão fora de alcance. Alguma coisa acontece conosco que não podemos mais nos comunicar. E eu os amava, os admirava, por muitas razões. Podem ter dado errado, podem ter se equivocado, podem ter ferido e sido feridos. Mas eram meus amigos. Eu devia ter sido uma amiga melhor? Deveria ter tentado estar mais por perto? Talvez. Mas eles são um possível eu. Amanhã, posso, sim, estar lá, nessa pele que eles vestem, nessa dor que eles externam. Somos todos sujeitos aos mesmos pecados, erros, dores.
Eles receberam um chamado de Deus, como eu creio ter recebido o meu. Deixaram suas casas, suas coisas, seus trabalhos. Abriram mão de estabilidades, de projetos, de uma carreira onde saberiam que a cada ano havia a possibilidade de ganhar um salário melhorzinho. Mas na vida pastoral, nunca se sabe. É difícil financiar um carro, comprar uma casa, colocar os filhos em certa escola. Ainda temos de humanizar o processo das nomeações pastorais, porque, meu Deus, deve haver um jeito de fazer isso sem tanto estresse!
Portanto, atire a primeira pedra. Porque muita gente entrega credencial porque cansou. Cansou de estar numa estrutura muitas vezes sufocante. De tantas vezes ser humilhado em público, rechaçado e encolhido. De não receber abraço, afago ou consolo na medida necessária. Cansaço não é fracasso; é impossibilidade.
Atire a primeira pedra. Porque muita gente sim, fracassou mesmo no ministério pastoral. Sim, talvez nem devessem ter estado lá, pra começo de conversa? Como é que essa gente conseguiu passar na faculdade, na prova da ordem, nas igrejas locais e agora a gente vê seu redundante fracasso? Atirem pedras, porque não tivemos a coragem de dizer a essas pessoas que elas não estavam aptas para o caminho. Portanto, o fracasso dessas pessoas, se existe, é nosso também. Não há coragem de dizer quando algo está errado e, finalmente, quando essa pessoa desiste, é porque não deu conta da corrida. E não havia ninguém lá, com amor e coragem suficiente para dizer a verdade, para evitar de novo esse cansaço. Então, atire a primeira pedra.
Todo esse meu desabafo é ainda superficial. Não explica tudo, eu sei. Mas as generalizações andam me matando. Já me disseram muitas vezes o quanto sou inadequada, que não atendo às expectativas, que sou séria demais, que sou fraca demais, que não dou conta. Já me disseram o quanto errei, que não compreendo as pessoas, que não fiz o que era preciso; que deveria dar mais de mim.
Já me acusaram de ter amado pouco, de não agradar as pessoas do jeito que elas querem. Já me indagaram acerca dos valores gastos. Já morei em casas velhas, com goteiras pingando. Já tive as panelas vazias e o coração pesado. Já me disseram que a minha pregação não era boa; que minha administração era fraca. Que eu não era espiritual, que não tinha o Espírito Santo, que não tinha visão de Deus.
Já me acusaram duramente quando eu disse que não poderia atender a uma convocação porque minha igreja não tinha dinheiro sequer pra cobrir suas despesas do mês. Estou, a cada ano, a ponto de desistir. Talvez seja eu a fracassada por não entregar minhas credenciais. Porque todas as vezes que eu não faço isso, é porque tenho medo. Medo de magoar ao Senhor, medo de decepcionar as pessoas. Tenho um profundo temor em ser pega fazendo o que Deus não quer de mim. Então resisto, me reinvento. Tento outra vez. Até a próxima crise. Elas nunca acabam. Cada vez é uma coisa diferente, um novo desafio... Quase como cinco maridos... a gente segue tentando, mesmo incompreendidos, mesmo equivocados, mesmo em pecado...
Por isso, Senhor, nossos pecados estão escritos no chão. Levante-se, Senhor, pise sobre eles. Libera-nos. Porque podemos te servir e para isso não precisamos de credenciais. Quando nos chamaste, não as tínhamos. Éramos Zaqueus, Pedros, Marias e Martas, Tiagos, Joões. E ainda somos. Uma credencial não muda isso, a não ser que queiramos. Ela é um reconhecimento, não um fardo, nem algo imprescindível.
Perdoa-nos, aos que saímos e aos que ficamos. Por achar que somos os donos da verdade. Por nos considerarmos melhores porque agora "somos livres da instituição" ou porque "não perdemos o chamado". Sabe por quê, Senhor? Porque certo és tu e nós, errad@s. Mas será extremamente curativo, se, ao contrário de todas as previsões, de todas as pedras amontoadas no canto, disseres a nós: Vai-te e não peques mais. Talvez, de alguma forma, possamos tod@s começar de novo. E, quem sabe desta vez, terminar bem. Amém, amém, amém.

3 comentários:

  1. Lindo texto, realmente temos a visão equivocadas dos homens e mulheres que recebem a credencial, como se essa credencial fosse uma carteirinha de superioridade, semi deus, esquecemos que santidade é processo e que não podemos deixar de receber sim a Graça de Deus, tanto quem recebe credenciais como quem não as recebe também.

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    1. Obrigada, Neide! Acho que nós, pastores e pastoras, estamos precisando de um pasto verde, de uma água tranquila e de nos redescobrirmos. E os membros também... olhar de novo para o pastor dos pastores, o mestre dos mestres e dele receber entendimento para prosseguir. Deus abençoe!

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  2. Lindo texto, faz-nos refletir que mais que credencial necessitamos sim e muito da Graça de Deus, sem ela, nada somos, independente de ter ou não credencial.

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